
A minha experiência anterior era escassa embora, seguindo a minha habitual mania das grandezas, se resumisse a um dos principais percursos mundiais, e o mais conhecido do continente Americano, o Caminho Inca, a via pedestre que essa antiga civilização — chacinada pelos nossos vizinhos espanhóis com a Bíblia como justificação — tinha traçado para ligar o Vale Sagrado à mítica cidade perdida de Machu Picchu.
Em relação à minha experiência anterior registaram-se algumas diferenças de vulto, umas positivas, outras nem tanto. Na coluna das vantagens sem dúvida o meu peso ser agora menor em alguns quilos, estar em melhor forma que há dois anos (embora em pior forma que há um mês), e o facto do Milford Track não exceder, na sua altitude máxima, os mil e poucos metros, contra os dois a quatro mil do caminho Inca. Por outro lado, e ao contrário do que sucedeu no Perú, em todas as paragens tive à minha disposição um tecto, uma cama lavada, um duche quente, e uma casa de banho privativa, factores que separam a civilização da selva, especialmente o contrato de exclusividade no conjunto retrete-autoclismo.
Na coluna das perdas há duas a salientar: dado que a Nova Zelândia não é, ao contrário do Perú, um País com mão-de-obra barata e abundante, não havia carregadores, pelo que eu próprio tive que transportar a minha bagagem às costas. Quando fazemos mais de cinquenta quilómetros em três dias, acreditem que há uma enorme diferença entre carregar um livro e uma garrafa de água ou levar dez quilos numa mochila, pelo que no final do percurso os meus ombros pareciam ter jogado dois jogos de Rugby de seguida.
O outro problema foi a chuva: a região das Fiordlands, onde o Milford Track se desenrola, é das mais chuvosas do planeta, pelo que oitenta por cento do percurso foi realizado debaixo de chuva, que alternou entre o forte e o dilúvio. Garanto que nunca me tinha sentido tão molhado, durante tanto tempo, e de forma tão profunda, como nestes dias, em especial no último dia de caminhada, em que percorri vinte e um quilómetros, em alguns trechos com água acima dos tornozelos, debaixo de um dilúvio torrencial que só teve cinco minutos de intervalo, em que brilhou um Sol radioso na clareira por onde eu passava naquele momento, qual andorinha no pino do Inverno, desaparecendo em seguida para dar lugar a novo turbilhão de água.

Nas duas curtas paragens que fiz nos vinte e um quilómetros do último dia, mudando a roupa do tronco para não ceder ao frio, comendo ou bebendo algo em pé, para não deixar os músculos relaxar ao sentar-me, lembrava-me sempre de uma verdade incontornável: que devia à mesma água que me ensopava até aos ossos, e que inutilizou temporariamente a minha máquina fotográfica nos dez quilómetros finais, algumas das visões mais arrebatadoras do percurso, senão da minha vida. Aqui, no Milford Track, somos inúmeras vezes recordados daquele velho provérbio português: não há bela sem senão.
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