quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

O Milford Track de uma ponta à outra

Tinha prometido a mim mesmo que faria um post em que detalhasse um pouco mais a aventura do Milford Track, nomeadamente porque não quero perder de vista o objectivo inicial deste blog, que ainda se mantém válido, que é preservar a memória que tenho desta viagem, de uma forma a que eu próprio a possa recuperar mais tarde.

Foi uma das experiências mais memoráveis da minha vida, tanto pela caminhada em si, com um cenário tão ou mais espectacular do que o que me rodeou no caminho Inca, nos Andes, o outro grande percurso que fiz, como pela experiência que foi somar a natural sobrecarga física de percorrer até vinte quilómetros diários em terreno irregular à exposição aos elementos, neste caso a uma chuva tão inclemente quanto constante, na maioria do percurso.

Comparada com as restantes entradas do blog esta é gigantesca. Não que eu considere isto um problema, mas mesmo que fosse não teria outra opção: as mais de duas mil palavras deste relato mais não serão que um breve e superficial resumo do que passei nos cinco dias em que percorri aquela que será, sem dúvida, uma das paisagens mais espectaculares do planeta.


Dia 01 (1,6 Km/20 minutos) - Queenstown-Glade House

O primeiro dia iniciou-se cedo, na sede da Ultimate Hikes, empresa que detém o monopólio —algo estranhamente comum aqui, diga-se de passagem — de exploração comercial deste trilho, de onde às nove e meia da manhã partiu a carrinha com todo o grupo. Foi-nos dada uma chapa com o nosso nome, para facilitar nossa identificação pelos guias e pela restante pandilha que me acompanhou: cinco australianos, seis americanos, um casal de israelitas, o exótico português e perto de duas dezenas de japoneses.


Da Ultimate Hikes vieram quatro guias, todos homens: Kelly, Nick, Chris e Hisa, o indispensável neozelandês de ascendência japonesa, para poder orientar os nipónicos na sua própria língua.

Depois de uma paragem para almoço, na pequena cidade de Te Anau, a hora e meia de distância, e de uma foto de família de todo o grupo, que nos seria dada no final juntamente com o diploma de conclusão do percurso, fomos levados até ao barco que, após descer o lago rodeado de montanhas (o Te Anau Sound, ou desfiladeiro) nos deixou no início do percurso, um curto passeio de quinze minutos, para percorrer uma milha (1,6 Km) até Glade House, o primeiro Lodge onde ficámos instalados, no meu caso com quarto e casa de banho privativos.
Largadas as malas, demos um curto passeio com o Kelly, o líder dos guias, que aproveitou para nos explicar, para além dos primeiros detalhes sobre a fauna e a flora daquela zona, o fenómeno das avalanches, não de neve mas de árvores, que ocorrem regularmente no percurso: quando ficam alguns (raros, como viríamos a saber) dias sem chover, a terra seca e leva a que as raízes das árvores se entrelaçem, provocando um efeito de reacção em cadeia quando ocorre algum movimento de terras nas chuvas subsequentes.

Após o jantar e antes do briefing diário, ritual que se repetiria todos os dias por esta altura, os guias improvisaram uma brincadeira em que cada um tinha que dizer de onde vinha, onde estaria se não estivesse ali a fazer o Track, e se preferia ser um pássaro ou um peixe. Se não quisesse levar a cabo este exercício poderia cantar uma canção (coisa que metade do grupo japonês fez, como forma de evitar falar inglês). Naturalmente que, vindo de um país de pescadores e rodeado dos nipónicos, os maiores consumidores de pescado per capita do Mundo, a minha escolha recaíu sobre um animal alado.
Terminado este ritual para quebrar o gelo, em que os participantes foram agrupados por nacionalidades, com este longínquo jardim à beira-mar plantado deixado para o final, recolhemo-nos, pelas nove da noite. As luzes seriam desligadas no quadro, como todos os dias até final, às dez da noite, na manhã seguinte o início da caminhada estava marcado para as oito e meia da manhã.

Dia 02 (16 Km / 5-7 horas a caminhar) - Glade House - Pompolona Lodge

A caminhada está organizada de forma a que cada pessoa a possa fazer ao seu ritmo, pelo que a hora de saída não é fixa, mas antes uma janela temporal de meia hora, com um guia na frente do grupo e um outro no final, que garante que toda a gente chega ao destino. Como ainda tinha a mochila para fechar quando acabei o pequeno-almoço, saí cerca de cinco minutos depois das oito e meia iniciais, já depois de alguns dos meus colegas de caminhada, mas antes da maioria.

Isto levou a que caminhasse sozinho as primeiras duas ou três horas, acompanhado aqui e ali de um japonês cujo ritmo destoava do restante grupo (the fastest man in Japan, chamava-lhe eu) até à pausa onde pude comer uma sopa quente, preparada pelo Kelly no abrigo das Hirere Falls, um belíssimo conjutno de cascatas, que é uma das paragens possíveis para quem faz o Track sem apoio (os chamados independent walkers, que têm instalações separdas do grupo guiado, em que eu me incluía). À sopa juntaram-se as sanduíches que cada um tinha preparado antes de abandonar a Glade House e estava almoçado e pronto a seguir.
Na hora inicial de caminhada a primeira dificuldade foi habituar-me ao peso da mochila, já que andar horas a fio sem carga é uma coisa, fazê-lo com mais de 10 Kg às costas é outra completamente diferente. Apesar da chuva fina que caía, a caminhada em bom passo estava a causar-me algum calor, pelo que decidi deixar o impermeável desabotoado. Em menos de dez minutos tinha a t-shirt ensopada, o que me forçou a trocá-la quando parei para almoçar.
Como pontos altos deste dia as Wetlands, uma zona húmida que funciona como autêntico viveiro desta luxuriante floresta — e simultaneamente uma amostra de como era a maioria do território neozelandês antes do seu solo ser convertido para uso agrícola — e o Clinton Canyon, cujas paredes de rocha que se elevam perpendicularmente ao nosso percurso, chegando a atingir os 1.200 m de altitude, pontuados por inúmeras quedas de água que se precipitam até ao solo.
Depois do almoço deixei de caminhar sozinho e tive a companhia do Chris, um americano expatriado há mais de doze anos em Hong Kong, que escolhera o Track para terminar o seu between jobs, entre um emprego na banca de investimento e o arranque da empresa de private equity que ia lançar com um amigo. Não por acaso, o Chris tinha uma passada acelerada semelhante à minha e igual tendência para competir com o relógio, pelo que acabaríamos por fazer companhia um ao outro ao longo da maioria do percurso.
Por volta das duas da tarde cheguei ao meu destino, Pompolona Lodge, e após um merecido duche quente caí nos braços de morfeu, para dormir uma retemperadora sesta, acordando perto das seis, meia hora antes do briefing do dia, que antecederia o jantar de três pratos servido na sala de jantar do Lodge.
Pelas nove e pouco a sala estava praticamente deserta, e todos recolhidos aos quartos para descansar para a etapa seguinte, o dia anunciado como o mais duro, já que teríamos que subir dos cerca de 300 m de altitude onde estávamos até aos mais de 1.100 do MacKinnons Pass, para depois descer novamente quase 1.000 metros.
Depois de ter dormido a sesta tive alguma dificuldade em adormecer, e como as luzes estavam desligadas ouvi um pouco de música no meu iPod, caindo no sono pouco depois com a ajuda da belíssima vista, dos cumes cobertos de neve, que dominava a minha janela.


Dia 03 (15 Km / 6-8 horas a caminhar) - Pompolona Lodge - Quintin Lodge

Pelas sete e meia iniciámos o percurso. A subida até ao MacKinnons Pass tem tanto de cansativa quanto espectacular, pelo que a partir de determinada altura, quando se iniciaram os onze zig-zags que nos levam até ao topo desacelerei o passo, deixando o Chris e o Kelly, o guia da frente, ganharem-me terreno, parando aqui e ali para tirar fotos da magnífica vista sobre o Clinton Valley, incluindo o Lodge de onde tinha saído um par de horas antes.

Chegado ao cimo, cerca de três horas e meia depois e ter saído do Lodge, e ao monumento a Clinton MacKinnon — o escocês que descobriu, no final do século XIX, o caminho até ao cimo, e que um dia partiu para o lago Te Anau num barco baleeiro para nunca mais ser visto — a vista compensou efectivamente o cansaço.

Foi também, para grande sorte nossa, do início da subida até chegarmos ao Quintin Lodge, o único trecho do percurso em que não choveu, o que não só tornou a caminhada muito mais agradável como nos permitiu boas condições de visibilidade num local onde num dia mau não se vê, literalmente, um palmo à frente do nariz.

Almoçámos e tomámos uma bebida quente (reincidi na sopa) no abrigo do topo do Pass, onde não é permitido dormir devido aos ventos lendariamente fortes, que destruíram o Lodge de 3 andares que chegou a existir aqui até à década de 90 e quase levaram uma caminhante — foi miraculosamente salva por uma corrente ascendente, que a trouxe em sentido inverso — a caír do precipício para o Clinton Valley.
Concluído o almoço pus-me a caminho, acompanhado do Chris, decididos a fazer os cerca de 5,5 Km da descida em pouco mais que uma hora, ou antes das três da tarde, o que conseguimos, embora o ritmo que imprimos à marcha se tenha juntado ao declive e à enorme irregularidade do percurso — que apenas interrompemos brevemente para apreciar algumas das belíssimas quedas de água mesmo junto ao trilho — para cobrar um preço alto ao estado das nossas pernas e joelhos à chegada. Tomámos um duche e acabei por deixar de lado a parte facultativa, a hora e meia até às Sutherland Falls. Depois do duche quente, deitei-me um pouco a ler e adormeci redondo, novamente até perto das seis, meia hora antes de ser servido o jantar.

Este foi o dia mais variado, sem dúvida, dado que tínhamos mudado de um vale para outro, da abertura de espaços do Clinton Valley para a sucessão de pequenas cascatas da descida, sem esquecer o topo da montanha, sem dúvida o ponto alto do dia, e um dos pontos altos da viagem.

Dia 04 (21 Km / 6-8 horas a caminhar) - Quintin Lodge - Sandfly Point

O boletim metereológico da véspera não augurava nada de bom: chuva forte, para a parte final do percurso. E o prognóstico confirmar-se-ia em toda a sua extensão. Aproveitei para estrear as calças impermeáveis que tinha comprado em Lisboa, e que se viriam a provar extremamente úteis, e fiz-me ao caminho.

Combinei com o Chris que, face ao estado do tempo, e ao facto de termos vinte e um quilómetros para percorrer, o ideal seria tentar fazê-los o mais rapidamente possível, minimizando as paragens e adoptando um ritmo acelerado.
Parámos apenas por duas vezes, uma por algum tempo para trocar a roupa do tronco, completamente ensopada, e comer uma sopa quente e uma sanduíche, e outra por escassos minutos, para comer chocolate, ir à casa de banho e trocar novamente de t-shirt.
Da segunda vez não cheguei sequer a sentar-me, para evitar que os músculos das pernas pudessem relaxar, acarretando o seu arrefecimento, que seria fatal para o restante percurso.
Nos últimos cinco ou seis quilómetros, quando julgávamos que já não nos poderíamos sentir mais molhados, verificámos que tal não era verdade, ao termos que atravessar pequenos ribeiros que se cruzavam com o trilho, obrigando-nos a andar com água bem acima dos tornozelos, e a ensopar ainda mais as nossas botas molhadas.

Esta parte foi fisicamente muito dura, não apenas pelo esforço a que o ritmo acelerado obrigou os nossos músculos, como pela forma como a água parecia chegar-nos aos ossos - nunca tinha visto os meus pés com a coloração, ou antes com a falta dela, que tinham quando finalmente tirei as botas, já no hotel em Milford - mas a verdade é que foi uma dureza recompensada pelo verde luxuriante da floresta em nosso redor, e pela água presente em cursos e cascatas da mais variada dimensão e potência, uma presença constante e variada, que ultrapassou tudo o que eu já tinha visto na minha vida.

Chegámos a Sandfly Point, ao marco das trinta e três milhas e meia, onde repousam umas boas duas dezenas de botas que não aguentaram a caminhada (incluindo as do meu amigo americano), que deve o seu nome aos mosquitos que, indiferentes à chuva, parecem querer devorar tudo o que se mexe neste local. Depois de esperarmos menos de uma hora, estabilizando a nossa temperatura corporal com a ajuda da sopa quente que os guias nos voltaram a preparar, chegou o barco que nos levaria à cidade de Milford, a dez minutos de distância, onde pude tomar um dos duches quentes que melhor me souberam na vida.

Dia 05 (Sem caminhada...) - Milford - Milford Sound - Queenstown

Pelas oito e meia da manhã abandonámos o hotel, onde tivémos quartos com fechadura na porta pela primeira vez desde o início da viagem, e embarcámos num cruzeiro de hora e meia pelo Milford Sound, um conjunto espectacular de desfiladeiros que ligam o lago ao Mar da Tasmânia, descrito por Ruyard Kipling como a oitava maravilha do Mundo.

A chuva inclemente da véspera apenas abrandou, e quando saímos do porto de Milford o tempo não convidava a saídas para o exterior. No entanto, depois da quantidade de chuva que tínhamos suportado na véspera, também não ia passar a viagem só no interior, pelo que me fui aventurando episodicamente na pôpa do navio, numa zona semi-coberta que dava algum abrigo.
Após cerca de vinte minutos o tempo acabou por melhorar um pouco, e a chuva abrandou até desaparecer, o que nos permitiu recuperar a visibilidade para os picos em redor, o maior dos quais, o Mitre Peak, se eleva mais de 1.200 m a partir do mar.
Mais do que isso, a melhoria do tempo trouxe à superfície a fauna do lago, mais concretamente duas famílias de golfinhos (é raro avistar-se mais do que uma vez golfinhos na viagem, segundo nos disseram) que acabaram por ser o corolário dos cinco dias do Track.

A viagem até Queenstwon permitiu-nos apreciar de outra perspectiva a paisagem das Fiordlands, região de montanhas, desfiladeiros e florestas onde se situa o Milford Track, vendo agora alta montanha da confortável perspectiva da janela do autocarro, e quando atravessámos o Homer Tunnel, que nos levaria de volta ao vale onde está Te Anau, o sentimento geral era de satisfação, que se sobrepunha ao cansaço.

Quando descemos novamente para Queenstown, muita gente dormiu o sono dos justos, de sorriso nos lábios: tenho sérias dúvidas que haja alguém naquele grupo de cerca de trinta pessoas quem esta não tenha sido uma das viagens da sua vida.

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