sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Quebra de tensão



Acordei um pouco mais tarde do que tem sido habitual, porque acabei por estar em contacto com Lisboa via internet, pelo que quando do lado de lá foram almoçar tarde aqui já eram horas impróprias. Estava com receio de perder horas preciosas do anunciado dia de Sol, mas não foi isso que sucedeu, e pelas onze da manhã o tempo estava cinzento, mais claro do que ontem, é certo, mas ainda assim cinzento.

Aproveitei para ir à Vila, fazer algumas compras — ainda não tinha comprado o carregamento de t-shirts que é para mim parte incontornável de qualquer viagem minimamente prolongada — e para levantar dinheiro pela primeira vez em território neozelandês, o que me permitiu constatar que o Maori é também uma das línguas oficiais do País, ou pelo menos do sistema bancário.

À medida que os minutos passavam o céu ia ficando progressivamente mais limpo, nomeadamente na direcção oposta à vila, na península de Kaikoura, pelo que foi por onde iniciei a minha senda exploratória. Depois de ter parado o carro no fim da estrada da península para ver a colónia de focas que aí vive, no regresso reparei num edifício onde a placa Historic Building anunciava a casa de Robert Fyffe.

Fyffe foi a personagem principal da colonização deste local pelos europeus, a partir da década de quarenta do século XIX, instalando uma fábrica de transformação de baleia, servida por um pequeno ancoradouro que passaria depois a cais, e tornaria Kaikoura, trinta anos depois, num porto de grande movimento, à volta do qual se organizou toda uma povoação.

Junto à casa de Fyffe, ainda de pé e em relativo bom estado de conservação, estava o The Pier, um hotel e restaurante com uma fantástica vista sobre o mar e sobre as montanhas, quase tão antigo como a povoação — servia de primeiro apoio para quem desembarcava no cais (pier) original de Kaikoura, que ainda hoje lá está, a menos de cinquenta metros de distância — onde parei para almoçar.

A partir daqui nada mais fiz do que deixar o ritmo próprio de Kaikoura apossar-se de mim. Já tinha reparado que andava a conduzir o carro a velocidades iguais ou inferiores a cinquenta quilómetros por hora (e qualquer pessoa que já tenha andado comigo de carro percebe o extraordinário que isto é), e a a actividade mais dinâmica e exigente que consegui ter foi experimentar diferentes regulações da máquina fotográfica.

Depois do almoço ocupei uma das mesas com bancos corridos de madeira no relvado sobranceiro ao mar, em frente ao restaurante, e com música calma do meu iPod em fundo fui intercalando a leitura de um fascinante (The Writing on the Wall: China and the West in the 21st century, de Will Hutton, recomendo vivamente) livro que comprei em Hong Kong com (largos) momentos de pura contemplação da paisagem e com trechos em que pura e simplesmente me reclinei no bano e me dediquei a dormitar e a tostar ao Sol.

Não sei se foi o sono, não sei se foi o facto de ter arrumado ontem o último assunto que deixei pendente em Lisboa, não sei se foi pura e simplesmente o ar do Pacífico e a atmosfera da Nova Zelândia, o que sei é que há muito tempo que não me conseguia sentir tão confortável a fazer tão pouco.

Há poucos meses atrás um amigo meu resumiu, numa frase genial, o efeito que tem sobre nós, Lisboetas, uma temporada passada na tranquilidade do Alentejo: depois de dois ou três dias o teu ritmo muda: é como uma quebra de tensão.

Foi assim que me senti hoje em Kaikoura. Aqui, num sítio onde não sou o único que não passa os cinquenta à hora, onde provavelmente passam meses seguidos sem que se oiça um carro buzinar, onde as pessoas entram no supermercado e deixam a chave na ignição do carro, é desta forma que nos sentimos passadas vinte e quatro horas: a desejar que a nossa vida fosse sempre assim, como uma grande e permanente quebra de tensão.

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