segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Ponto final

Termina aqui relato da viagem que me levou até ao lado oposto do mundo, e de volta. Já passaram duas semanas desde o meu regresso, e embora neste tempo já tenha tido a minha velha rotina, de excesso de trabalho e escassez de tempo para pensar, de volta em todo o seu esplendor, continua presente no meu espírito a sensação que tive no regresso, e a a forma como estranhei o espaço da minha própria casa no momento em que nela reentrei.

Uma das formas de explicar a razão da existência deste blog é ir à raíz da palavra: blog é o diminutivo de Weblog, uma espécie de registo (log) ou diário de bordo em formato digital. Os ingleses, muito mais rigorosos, diriam (como recordou a senhora com quem me cruzei no Grand View de Lake Tekapo) que eu fiz um
journal da minha viagem, embora a versão mais americanizada seja perfeitamente aceitável.

A razão primordial era preservar um registo que eu próprio pudesse consultar mais tarde, um auxiliar de memória que me permitisse recordar a viagem com a distância que só o tempo permite dar.

Também era uma forma de recuperar um hábito que me acompanha desde a infância, mas que deixei de exercer nos últimos anos, o de escrever pelo puro prazer da escrita, muitas vezes como uma forma diferente de pensar alto, deixando que a pena me transporte pelo caminho dos meus próprios pensamentos, sem objectivo definido à partida mas encontrando, na maioria das vezes, um caminho e um destino de chegada.

De início confesso que hesitei em partilhar o
blog com alguém, porque a verdade é que desde sempre tive enorme renitência em partilhar o que escrevo, e a esmagadora maioria das palavras que pus no papel, com a excepção natural mas pontual das mensagens que escrevi com um destinatário em mente, foram apenas vistas pelos meus próprios olhos. Nunca hesitei em partilhar o que escrevi por medo da crítica, dado que feliz ou infelizmente o tamanho do meu ego sempre me pôs a salvo desse tipo de constrangimentos, mas porque para mim a escrita sempre foi um exercício íntimo, sem outro objectivo que não fosse a simples clarificação dos pensamentos dispersos que o meu espírito sempre alimentou.

Acabei no entanto por fazê-lo, e um exercício de auto-recreação converteu-se numa brincadeira partilhada com os meus amigos. Se nunca escrevi para eles, nem foi o facto de haver mais alguém a ler que me motivou a escrever, ou me senti sequer condicionado por quem podia eventualmente estar a ler o blog (se fosse o caso teria feito 'posts' mais adequados ao nível de atenção médio de quem lê algo no écran), não posso negar que foi agradável saber que os que me são próximos partilharam comigo o que sucedeu na minha viagem, nalguns casos consultando o blog com regularidade.

Sei que provavelmente isto ficará muito tempo preservado num qualquer arquivo virtual, na gigantesca server farm do Google, empresa de quem o Blogger é propriedade. Não sei por quanto tempo resistirá a uma eventual limpeza de servidores, mas até aí servirá o seu objectivo inicial, de ser um registo que me permita rever as memórias que armazenei nestes vinte e seis dias, a mais prolongada viagem que já fiz, e a primeira em que embarquei sozinho. Será, repito, um óptimo instrumento para rever as minhas memórias, porque mesmo quem um dia o Google decida eliminar esta página, tenho a certeza absoluta que permancerá gravada de forma clara na minha memória, o resto dos meus dias.


Nota final: um blog deve ser lido pela ordem cronológica em que foi escrito, ou seja, começando pelo final desta página (todas as entradas estão numa única página) e subindo até chegar aqui.

Quem esteja a ler isto pela primeira vez deve agora ir até ao final, até há entradas com referências a 'posts' anteriores, pelo que a ordem de leitura não é, apesar de tudo, irrelevante.



32 hours flying people

Escrevo este post no vôo matinal da TAP de Frankfurt para Lisboa, a 22 de Dezembro, o último dos três aviões que ligaram Auckland à minha cidade natal. São agora praticamente sete da manhã e sobrevôo a cidade de Paris, facto para o qual o comandante do avião teve o cuidado de nos alertar há dez minutos, dizendo-nos que teríamos a oportunidade de ver a cidade do lado esquedo do avião, no qual me encontro.

Foi, deste ponto de vista, uma viagem onde não faltaram de vistas privilegiadas, de que o corolário foi agora a visão da capital francesa na hora perfeita, quando o nascer do Sol se antevê e tinge o horizonte de tons vivos de encarnado, mas a superfície ainda está mergulhada na noite, permitindo-nos assim apreciar a iluminação pública ainda em funcionamento, que vista de onze mil metros de altitude resulta no desenho da cuidada organização urbanística da cidade.

Do primeiro vôo, de Auckland a Hong Kong, ficou-me na retina a fantástica visão diurna do Mar de Coral no Nordeste Australiano, uma sucessão de centenas de ilhas e ilhotas dos mais variados formatos, dimensões e profundidades, levando a água a assumir uma coloração quase sobrenatural nalguns locais, culminando com a Grande Barreira de Coral, esse santuário da vida natural de que nos recordamos antes de qualquer outro local quando pensamos na costa virgem da Áustralia.

Ao caír da noite a rota levou-nos ainda a sobrevoar Manila, capital das Filipinas, a última de múltiplas ilhas iluminadas que o avião foi sobrevoando, poucas horas antes de aterrar em Hong Kong. No vôo seguinte aproveitei para me estender um pouco, dormindo as cinco ou seis horas de sono que desfrutei em toda a viagem, o que me levou a acordar no preciso momento em que atravessávamos as montanhas a Norte do planalto tibetano, cuja dimensão e altura monumentais as faziam parecer, vistas da minha janela, quase ao alcance mão, apesar de estarmos numa altitude claramente superior a dez mil metros.

Estou cansado, natural para quem vem de quase vinte e três horas dentro de aviões, entrecortadas por uma paragem em Hong Kong onde aproveitei, para além das últimas compras de Natal, para resolver à distância alguns problemas que ocorriam no escritório. Resisti, no entanto, melhor do poderia supôr, facto a que não será alheia a qualidade do espaço e serviço dos aviões da Cathay Pacific. Resta-me esperar pelo mais difícil, que é recolher em tempo razoável as minhas malas na Portela, para poder dizer, quando a meio da manhã chegar ao tratamento anti-Jet Lag que marquei há um mês, no Spa do Ritz, que tive uma viagem perfeita.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Health Regulations

Estou confortavelmente sentado no lounge da Qantas, check in feito e bagagem despachada, depois de ter helped myself (a língua inglesa tem de facto expressões fantásticas) de uma selecção de queijos e bolachas e do que será provavelmente o último exemplar do Sauvignon Blanc de Marlborough, a principal região produtora de vinhos da Nova Zelândia, que terei oportunidade de beber nos tempos mais próximos.

Sei que normalmente nunca bebo álcool antes do pôr do Sol, mas por um lado estou nos últimos minutos da minha presença em solo neozelandês, e por outro no fuso horário do meu destino, Lisboa, neste momento passa meia hora da meia noite, altura perfeitamente respeitável para se beber um bom copo de vinho.

Confesso que sempre gostei de aeroportos. Pode parecer estranho para quem não me conheça, mas muitos dos meus amigos já me ouviram a frase, que evito ir à Portela com outro fim que não seja embarcar no avião que me está destinado, porque a minha vontade é meter-me no primeiro avião que arranjar. Com um pouco de sorte e muito trabalho, talvez algum dia chegue a este ponto, de quando me der vontade apanhar um táxi, de trolley numa mão e cartão de crédito na outra, à procura do próximo sítio para visitar.

Mas a minha predilecção pelo moderno sucessor da grande gare ferroviária do Século XIX não tem só a ver com as possibilidades que me oferece. Esse é um aspecto que se restringe a Lisboa. O que me agrada é o ambiente, porque é a melhor representação da aldeia que, nalguns aspectos, este nosso planeta se tornou. Num grande aeroporto não há etnia ou origem dominante, e nos tempos de hoje o tom da pela ou as feições nada têm a ver com nacionalidade das pessoas com quem nos cruzamos.

O que é normal para uns é extrema falta de educação para outros, e vice-versa, e foi disso que me recordei a propósito de um detalhe: a placa que estava junto à farta mesa de comidas onde os convidados do lounge podem help themselves, avisando que a comida não pode ser retirada com as mãos, mas fazendo-o de forma a não ofender sensibilidades, dizendo que health regulations state that it cannot be done. Porque mesmo aqui neste recanto vip do aeroporto, não podemos assumir que toda a gente pensa da mesma forma que nós.

De malas feitas

Tenho as malas feitas, deixando de fora apenas o que necessito amanhã e o que levarei na bagagem de mão. Depois de tantas vezes ter mudado de hotel, aberto e fechado a mala, separado roupa suja e limpa, acho que nos próximos tempos não vou querer olhar para uma mala de viagem.

Tirei da bagagem de porão a únicas coisas que têm impreterivelmente que chegar comigo (os presentes de Natal das minhas sobrinhas, comprados na loja da Hello Kitty do Venetian, e as chaves da minha casa de Lisboa) para precaver algum atraso na respectiva chegada à Portela. Dentro de onze horas estarei dentro avião da Cathay Pacific que me levará até Hong Kong.

Hoje dormi, propositadamente, pouco, e o cansaço que agora sinto também contribuiu para que neste momento só consiga pensar nos próximos dois dias, e nas duas viagens de meio dia (onze e doze horas) que tenho que fazer seguidas daqui a Frankfurt, última escala até Lisboa. Talves estes dois dias de pouco sono mal me permitam torná-las mais curtas, como as da vinda, passando uma boa parte do tempo dentro do avião a dormir.

Já deixei de conseguir olhar para trás, e de me lembrar do que vivi nas últimas três semanas e meia. Não estou preocupado, longe disso. A partir do momento em que aterre em Lisboa, tenho o resto da minha vida para me lembrar da minha primeira vinda à Ocêania, e estou seguro que o difícil será não o fazer.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

A drink in a small world

Cheguei há pouco a Auckland, e ao contrário do que a metereologia previa no início da semana (e me motivou a antecipar o regresso em 24 horas) a chuva não domina o horizonte, pelo que me é possível ver, da janela do décimo sexto andar do meu quarto no Sky City Grand Hotel, toda esta zona da cidade, da Marina até ao lado de lá da Baía.

Aproveitando a vista simpática e o excelente leque de opções do room service do hotel aceitei uma sugestão que me foi feita ainda em Lisboa, de provar a Below 42, a vodka neozelandesa, que segundo o barman inglês do lounge do Largo da Palma, ali ao Príncipe Real, é algo como the new black desta bebida de origem polaca (wodka signfiica água em polaco) que toda a gente toma por invenção russa, sucedendo ao Grey Goose, marca francesa de excepcional qualidade a que, confesso, me afeiçoei nos últimos tempos, ao ponto de não deixar de procurar por ela em quaquer free shop por onde passe, tentando evitar os abusivos cinquenta euros que pedem em Lisboa por uma simples garrafa de 750 ml (versus 33 por uma garrafa de litro em Barajas, 35 em Frankfurt ou 34 em Genéve).

Estranhamente — ou talvez não tão estranhamente num país onde as campanhas contra a violência doméstica associada ao álcool dizem que it's not about the drink, it's about the way you drink, ou seja bebe à vontade desde que não batas na mulher — os pedidos de álcool não têm taxa de room service. Se quiser pedir uma torrada no quarto pago uns dólares, mas se me quiser embebedar, desde que a minha consciência não tenha problemas, não será a carteira a colocar objecções. Assim, custou-me ainda menos do que seria previsível desobedecer à regra, que sigo escrupulosamente em Portugal mas tenho invertido nos Antípodas, de não beber antes do Sol desaparecer do horizonte.

Com regra ou sem ela, a minha consciência está tranquila. Se por um lado não costumo beber álcool sozinho, nesse caso isso implicaria vinte e seis dias sem beber sequer uma cerveja (e este foi o meu primeiro vodka, por acaso), pelo que essa parte do problema há muito foi resolvida. Por outro lado, mesmo descontando a influência subliminar do product placement da indústria das bebidas no cinema, se pensar que para chegar a Lisboa a partir do momento em amanhã entre no avião da Cathay Pacific vou precisar de trinta e duas horas entre aviões, free shops e executive lounges, a expressão que me vem imediatamente à cabeça é a frase cinematográfica comum em ocasiões de pressão: I need a drink.

Armado da vodka tónica, de um prato de cajú salgado e do portátil, fiz o que faço quando decido dedicar-me à inactividade no estrangeiro: abri os sites dos jornais portugueses. Detectei, nos primeiros trinta segundos, duas curiosidades representativas da forma a Terra se tornou, efectivamente, num planeta pequeno, pelo menos do ponto de vista de quem está do lado oposto do Mundo há vinte e quatro dias.


No site do DN...
fiquei a saber que o tecto da entrada do Venetian, o maior casino do mundo, que o empresário norte-americano, de Las Vegas, Steve Wynn, abriu há pouco tempo em Macau, é uma cópia da Capela Sistina, a tal que obrigou Miguel Ãngelo a ficar quatro anos seguidos de barriga para cima, esforço que ainda hoje todos agradecemos ao ir ao Vaticano.
Quando entrei lá há uns dias fiquei logo com a ideia que conhecia aquilo de algum lado. Agora, graças à reportagem do DN sobre a inauguração do MGM Grand, o edifício cuja arquitectura assente num jogo de volumes desencontrados, em escala monumental, mais me interessou no novo skyline de Macau (e que o mais antigo diário português descreve, aliás, de forma adequada), fez-se luz.


No site do Expresso...
vi a notícia de que Peter Jackson, nado e criado nestas ilhas que tão bem me têm recebido, ia realizar The Hobbit, a prequela (sic) do Senhor dos Anéis, depois de longa discussão com a New Line Cinema, que produziu o filme mais conhecido alguma vez rodado na Nova Zelândia.

Jackson vai ser um dos realizadores executivos, o que quer que isso seja — na terminologia de Hollywood executivo normalmente significa o inverso, ou seja será outra pessoa a ter o trabalho de realizar o filme —, e a primeira conclusão a tirar é que se a primeira triologia cinematográfica resultava de um trio literário de JRR Tolkien (que eu por acaso li), desta vez um único dos livros que se desenrola no mundo de fantasia que o escritor inglês concebeu no tempo livre nas trincheiras da I Guerra Mundial vai ser transformado não num, mas em dois filmes. Milagre da multiplicação dos pães, em versão californiana.

Só vi a abertura da notícia do site do Expresso. A restante informação, e os detalhes sumarentos da luta entre o barbudo mais conhecido da Nova Zelândia e os tubarões dos estúdios foram tirados do Otago Daily Mail, que comprei por 1 dólar para acompanhar o almoço no Vudu Cafe, de Queenstown.

Waiting for Gate 6 to Open

Escrevo este 'post' no arejado café do aeroporto de Queenstown (maravilhas do WiFi), cujas janelas panorâmicas permitem descortinar a pista de onde há um movimento tranquilo, mas constante, de pequenos aviões que levantam, provavelmente a caminho de um dos múltiplos passeios de avioneta e helicóptero que são anunciados na cidade.

Para despedida, para além de um último acesso consumista, comprando o presente que me faltava para dar à dezena e meia de pessoas que ajudaram a proteger-me as costas no escritório, e ainda uns ténis que tinham despertado a minha atenção nestes últimos dois dias, optei por repetir a actividade radical da antevéspera, e sobrevoei a cidade de parapente.

O vôo de hoje foi bastante mais prolongado do que ontem, um lucky break nas palavras do meu piloto. Se à saída havia dúvidas que as condições fossem as ideiais, conseguimos apanhar uma sucessão de térmicas (correntes ascendentes de ar quente) que nos permitiram subir bem acima do ponto inicial, e obter uma perspectiva fantástica da cidade e do Lago Wakatipu.

Completámos o vôo, que se prolongou por uma boa meia hora, com um conjunto de espirais apertadas até ao campo que serve de pista de aterragem, em pleno centro de Queenstown, e apesar de poder dizer ao piloto que parasse ou abrandasse aquela vertigem não o fiz, já que me pareceu adequado terminar a estadia nesta cidade de viciados em adrenalina com a maior descarga da dita cuja da minha estadia.

Dentro de vinte a trinta minutos irei para a Gate 6, seguro de que terei saudades desta terra onde até o embarque no aeroporto se faz a um ritmo tranquilo, sem pressas desnecessárias e sem ninguém se acumular à espera do avião antes de tal ser estritamente necessário (pelo que a Gate só abrirá mesmo uns minutos antes de partirmos) e nas lojas as pessoas não se limitam a perguntar como estamos, mas insistem em saber, com genuína preocupação se estamos having a nice day today?

Dentro de três dias, que na prática serão menos de dois, já que vou recuperar agora, e de uma só vez, o meio dia que perdi gradualmente em fusos horários ao vir para cá, estarei em Lisboa. Tenho uma pontinha de saudades de casa, como qualquer bom português, mas nada que faça sombra à certeza mais profunda que ocupa agora o meu pensamento: que a partir de agora passarei a ter saudades deste sítio também, que tive a boa ideia, uma das melhores da minha vida, de incluir no roteiro para carimbar o quinto continente no passaporte que há nove anos e meio tirei para conhecer o Tibet.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

O Milford Track de uma ponta à outra

Tinha prometido a mim mesmo que faria um post em que detalhasse um pouco mais a aventura do Milford Track, nomeadamente porque não quero perder de vista o objectivo inicial deste blog, que ainda se mantém válido, que é preservar a memória que tenho desta viagem, de uma forma a que eu próprio a possa recuperar mais tarde.

Foi uma das experiências mais memoráveis da minha vida, tanto pela caminhada em si, com um cenário tão ou mais espectacular do que o que me rodeou no caminho Inca, nos Andes, o outro grande percurso que fiz, como pela experiência que foi somar a natural sobrecarga física de percorrer até vinte quilómetros diários em terreno irregular à exposição aos elementos, neste caso a uma chuva tão inclemente quanto constante, na maioria do percurso.

Comparada com as restantes entradas do blog esta é gigantesca. Não que eu considere isto um problema, mas mesmo que fosse não teria outra opção: as mais de duas mil palavras deste relato mais não serão que um breve e superficial resumo do que passei nos cinco dias em que percorri aquela que será, sem dúvida, uma das paisagens mais espectaculares do planeta.


Dia 01 (1,6 Km/20 minutos) - Queenstown-Glade House

O primeiro dia iniciou-se cedo, na sede da Ultimate Hikes, empresa que detém o monopólio —algo estranhamente comum aqui, diga-se de passagem — de exploração comercial deste trilho, de onde às nove e meia da manhã partiu a carrinha com todo o grupo. Foi-nos dada uma chapa com o nosso nome, para facilitar nossa identificação pelos guias e pela restante pandilha que me acompanhou: cinco australianos, seis americanos, um casal de israelitas, o exótico português e perto de duas dezenas de japoneses.


Da Ultimate Hikes vieram quatro guias, todos homens: Kelly, Nick, Chris e Hisa, o indispensável neozelandês de ascendência japonesa, para poder orientar os nipónicos na sua própria língua.

Depois de uma paragem para almoço, na pequena cidade de Te Anau, a hora e meia de distância, e de uma foto de família de todo o grupo, que nos seria dada no final juntamente com o diploma de conclusão do percurso, fomos levados até ao barco que, após descer o lago rodeado de montanhas (o Te Anau Sound, ou desfiladeiro) nos deixou no início do percurso, um curto passeio de quinze minutos, para percorrer uma milha (1,6 Km) até Glade House, o primeiro Lodge onde ficámos instalados, no meu caso com quarto e casa de banho privativos.
Largadas as malas, demos um curto passeio com o Kelly, o líder dos guias, que aproveitou para nos explicar, para além dos primeiros detalhes sobre a fauna e a flora daquela zona, o fenómeno das avalanches, não de neve mas de árvores, que ocorrem regularmente no percurso: quando ficam alguns (raros, como viríamos a saber) dias sem chover, a terra seca e leva a que as raízes das árvores se entrelaçem, provocando um efeito de reacção em cadeia quando ocorre algum movimento de terras nas chuvas subsequentes.

Após o jantar e antes do briefing diário, ritual que se repetiria todos os dias por esta altura, os guias improvisaram uma brincadeira em que cada um tinha que dizer de onde vinha, onde estaria se não estivesse ali a fazer o Track, e se preferia ser um pássaro ou um peixe. Se não quisesse levar a cabo este exercício poderia cantar uma canção (coisa que metade do grupo japonês fez, como forma de evitar falar inglês). Naturalmente que, vindo de um país de pescadores e rodeado dos nipónicos, os maiores consumidores de pescado per capita do Mundo, a minha escolha recaíu sobre um animal alado.
Terminado este ritual para quebrar o gelo, em que os participantes foram agrupados por nacionalidades, com este longínquo jardim à beira-mar plantado deixado para o final, recolhemo-nos, pelas nove da noite. As luzes seriam desligadas no quadro, como todos os dias até final, às dez da noite, na manhã seguinte o início da caminhada estava marcado para as oito e meia da manhã.

Dia 02 (16 Km / 5-7 horas a caminhar) - Glade House - Pompolona Lodge

A caminhada está organizada de forma a que cada pessoa a possa fazer ao seu ritmo, pelo que a hora de saída não é fixa, mas antes uma janela temporal de meia hora, com um guia na frente do grupo e um outro no final, que garante que toda a gente chega ao destino. Como ainda tinha a mochila para fechar quando acabei o pequeno-almoço, saí cerca de cinco minutos depois das oito e meia iniciais, já depois de alguns dos meus colegas de caminhada, mas antes da maioria.

Isto levou a que caminhasse sozinho as primeiras duas ou três horas, acompanhado aqui e ali de um japonês cujo ritmo destoava do restante grupo (the fastest man in Japan, chamava-lhe eu) até à pausa onde pude comer uma sopa quente, preparada pelo Kelly no abrigo das Hirere Falls, um belíssimo conjutno de cascatas, que é uma das paragens possíveis para quem faz o Track sem apoio (os chamados independent walkers, que têm instalações separdas do grupo guiado, em que eu me incluía). À sopa juntaram-se as sanduíches que cada um tinha preparado antes de abandonar a Glade House e estava almoçado e pronto a seguir.
Na hora inicial de caminhada a primeira dificuldade foi habituar-me ao peso da mochila, já que andar horas a fio sem carga é uma coisa, fazê-lo com mais de 10 Kg às costas é outra completamente diferente. Apesar da chuva fina que caía, a caminhada em bom passo estava a causar-me algum calor, pelo que decidi deixar o impermeável desabotoado. Em menos de dez minutos tinha a t-shirt ensopada, o que me forçou a trocá-la quando parei para almoçar.
Como pontos altos deste dia as Wetlands, uma zona húmida que funciona como autêntico viveiro desta luxuriante floresta — e simultaneamente uma amostra de como era a maioria do território neozelandês antes do seu solo ser convertido para uso agrícola — e o Clinton Canyon, cujas paredes de rocha que se elevam perpendicularmente ao nosso percurso, chegando a atingir os 1.200 m de altitude, pontuados por inúmeras quedas de água que se precipitam até ao solo.
Depois do almoço deixei de caminhar sozinho e tive a companhia do Chris, um americano expatriado há mais de doze anos em Hong Kong, que escolhera o Track para terminar o seu between jobs, entre um emprego na banca de investimento e o arranque da empresa de private equity que ia lançar com um amigo. Não por acaso, o Chris tinha uma passada acelerada semelhante à minha e igual tendência para competir com o relógio, pelo que acabaríamos por fazer companhia um ao outro ao longo da maioria do percurso.
Por volta das duas da tarde cheguei ao meu destino, Pompolona Lodge, e após um merecido duche quente caí nos braços de morfeu, para dormir uma retemperadora sesta, acordando perto das seis, meia hora antes do briefing do dia, que antecederia o jantar de três pratos servido na sala de jantar do Lodge.
Pelas nove e pouco a sala estava praticamente deserta, e todos recolhidos aos quartos para descansar para a etapa seguinte, o dia anunciado como o mais duro, já que teríamos que subir dos cerca de 300 m de altitude onde estávamos até aos mais de 1.100 do MacKinnons Pass, para depois descer novamente quase 1.000 metros.
Depois de ter dormido a sesta tive alguma dificuldade em adormecer, e como as luzes estavam desligadas ouvi um pouco de música no meu iPod, caindo no sono pouco depois com a ajuda da belíssima vista, dos cumes cobertos de neve, que dominava a minha janela.


Dia 03 (15 Km / 6-8 horas a caminhar) - Pompolona Lodge - Quintin Lodge

Pelas sete e meia iniciámos o percurso. A subida até ao MacKinnons Pass tem tanto de cansativa quanto espectacular, pelo que a partir de determinada altura, quando se iniciaram os onze zig-zags que nos levam até ao topo desacelerei o passo, deixando o Chris e o Kelly, o guia da frente, ganharem-me terreno, parando aqui e ali para tirar fotos da magnífica vista sobre o Clinton Valley, incluindo o Lodge de onde tinha saído um par de horas antes.

Chegado ao cimo, cerca de três horas e meia depois e ter saído do Lodge, e ao monumento a Clinton MacKinnon — o escocês que descobriu, no final do século XIX, o caminho até ao cimo, e que um dia partiu para o lago Te Anau num barco baleeiro para nunca mais ser visto — a vista compensou efectivamente o cansaço.

Foi também, para grande sorte nossa, do início da subida até chegarmos ao Quintin Lodge, o único trecho do percurso em que não choveu, o que não só tornou a caminhada muito mais agradável como nos permitiu boas condições de visibilidade num local onde num dia mau não se vê, literalmente, um palmo à frente do nariz.

Almoçámos e tomámos uma bebida quente (reincidi na sopa) no abrigo do topo do Pass, onde não é permitido dormir devido aos ventos lendariamente fortes, que destruíram o Lodge de 3 andares que chegou a existir aqui até à década de 90 e quase levaram uma caminhante — foi miraculosamente salva por uma corrente ascendente, que a trouxe em sentido inverso — a caír do precipício para o Clinton Valley.
Concluído o almoço pus-me a caminho, acompanhado do Chris, decididos a fazer os cerca de 5,5 Km da descida em pouco mais que uma hora, ou antes das três da tarde, o que conseguimos, embora o ritmo que imprimos à marcha se tenha juntado ao declive e à enorme irregularidade do percurso — que apenas interrompemos brevemente para apreciar algumas das belíssimas quedas de água mesmo junto ao trilho — para cobrar um preço alto ao estado das nossas pernas e joelhos à chegada. Tomámos um duche e acabei por deixar de lado a parte facultativa, a hora e meia até às Sutherland Falls. Depois do duche quente, deitei-me um pouco a ler e adormeci redondo, novamente até perto das seis, meia hora antes de ser servido o jantar.

Este foi o dia mais variado, sem dúvida, dado que tínhamos mudado de um vale para outro, da abertura de espaços do Clinton Valley para a sucessão de pequenas cascatas da descida, sem esquecer o topo da montanha, sem dúvida o ponto alto do dia, e um dos pontos altos da viagem.

Dia 04 (21 Km / 6-8 horas a caminhar) - Quintin Lodge - Sandfly Point

O boletim metereológico da véspera não augurava nada de bom: chuva forte, para a parte final do percurso. E o prognóstico confirmar-se-ia em toda a sua extensão. Aproveitei para estrear as calças impermeáveis que tinha comprado em Lisboa, e que se viriam a provar extremamente úteis, e fiz-me ao caminho.

Combinei com o Chris que, face ao estado do tempo, e ao facto de termos vinte e um quilómetros para percorrer, o ideal seria tentar fazê-los o mais rapidamente possível, minimizando as paragens e adoptando um ritmo acelerado.
Parámos apenas por duas vezes, uma por algum tempo para trocar a roupa do tronco, completamente ensopada, e comer uma sopa quente e uma sanduíche, e outra por escassos minutos, para comer chocolate, ir à casa de banho e trocar novamente de t-shirt.
Da segunda vez não cheguei sequer a sentar-me, para evitar que os músculos das pernas pudessem relaxar, acarretando o seu arrefecimento, que seria fatal para o restante percurso.
Nos últimos cinco ou seis quilómetros, quando julgávamos que já não nos poderíamos sentir mais molhados, verificámos que tal não era verdade, ao termos que atravessar pequenos ribeiros que se cruzavam com o trilho, obrigando-nos a andar com água bem acima dos tornozelos, e a ensopar ainda mais as nossas botas molhadas.

Esta parte foi fisicamente muito dura, não apenas pelo esforço a que o ritmo acelerado obrigou os nossos músculos, como pela forma como a água parecia chegar-nos aos ossos - nunca tinha visto os meus pés com a coloração, ou antes com a falta dela, que tinham quando finalmente tirei as botas, já no hotel em Milford - mas a verdade é que foi uma dureza recompensada pelo verde luxuriante da floresta em nosso redor, e pela água presente em cursos e cascatas da mais variada dimensão e potência, uma presença constante e variada, que ultrapassou tudo o que eu já tinha visto na minha vida.

Chegámos a Sandfly Point, ao marco das trinta e três milhas e meia, onde repousam umas boas duas dezenas de botas que não aguentaram a caminhada (incluindo as do meu amigo americano), que deve o seu nome aos mosquitos que, indiferentes à chuva, parecem querer devorar tudo o que se mexe neste local. Depois de esperarmos menos de uma hora, estabilizando a nossa temperatura corporal com a ajuda da sopa quente que os guias nos voltaram a preparar, chegou o barco que nos levaria à cidade de Milford, a dez minutos de distância, onde pude tomar um dos duches quentes que melhor me souberam na vida.

Dia 05 (Sem caminhada...) - Milford - Milford Sound - Queenstown

Pelas oito e meia da manhã abandonámos o hotel, onde tivémos quartos com fechadura na porta pela primeira vez desde o início da viagem, e embarcámos num cruzeiro de hora e meia pelo Milford Sound, um conjunto espectacular de desfiladeiros que ligam o lago ao Mar da Tasmânia, descrito por Ruyard Kipling como a oitava maravilha do Mundo.

A chuva inclemente da véspera apenas abrandou, e quando saímos do porto de Milford o tempo não convidava a saídas para o exterior. No entanto, depois da quantidade de chuva que tínhamos suportado na véspera, também não ia passar a viagem só no interior, pelo que me fui aventurando episodicamente na pôpa do navio, numa zona semi-coberta que dava algum abrigo.
Após cerca de vinte minutos o tempo acabou por melhorar um pouco, e a chuva abrandou até desaparecer, o que nos permitiu recuperar a visibilidade para os picos em redor, o maior dos quais, o Mitre Peak, se eleva mais de 1.200 m a partir do mar.
Mais do que isso, a melhoria do tempo trouxe à superfície a fauna do lago, mais concretamente duas famílias de golfinhos (é raro avistar-se mais do que uma vez golfinhos na viagem, segundo nos disseram) que acabaram por ser o corolário dos cinco dias do Track.

A viagem até Queenstwon permitiu-nos apreciar de outra perspectiva a paisagem das Fiordlands, região de montanhas, desfiladeiros e florestas onde se situa o Milford Track, vendo agora alta montanha da confortável perspectiva da janela do autocarro, e quando atravessámos o Homer Tunnel, que nos levaria de volta ao vale onde está Te Anau, o sentimento geral era de satisfação, que se sobrepunha ao cansaço.

Quando descemos novamente para Queenstown, muita gente dormiu o sono dos justos, de sorriso nos lábios: tenho sérias dúvidas que haja alguém naquele grupo de cerca de trinta pessoas quem esta não tenha sido uma das viagens da sua vida.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Tranquilidade, na Terra e no Céu

Hoje de manhã, ao acordar de um sono retemperador — depois de contrariar duas vezes o meu organismo, que se queria levantar às sete e meia e às oito e meia da manhã, apesar de me ter deitado pelas quatro — fui premiado com uma supresa: um Céu imaculado e um Sol radioso, como já não via praticamente desde que saí de Kaikoura. Depois de ter tido provavelmente os três ou quatro dias mais molhados da minha vida, esta terça-feira não podia ter começado melhor.

Dirigi-me, revista em punho, carteira e iPod no bolso, para o lago, onde escolhi uma das agradáveis esplanadas para almoçar, um delicioso salmão acompanhado de uma tempura de bróculos à maneira tailandesa, com sementes de sésamo a fazer a vez do polme na cobertura dos vegetais. Após o almoço dirigi-me a uma chocolateria artesanal próxima, onde escolhi como sobremesa um óptimo gelado de chocolate negro, entregando-me de seguida, como já não fazia desde o The Pier, em Kaikoura, à mais pura inactividade, deitando-me na relva fresca durante um bom período, intercalando a leitura com a simples exposição ao Sol, ao som da música do meu iPod, abrindo de vez em quando os olhos para disfrutar da belíssima paisagem, reparando com agrado como toda a gente em meu redor parecia partilhar o meu ritmo.

Mesmo para quem não costuma ou gosta de estar parado, como é o meu caso, são estes momentos que nos fazem apreciar o privilégio de estar de férias, sem precisar de actividade para nos sentirmos úteis ou vivos. Ao vigésimo segundo dia de ausência de Lisboa, e uma semana depois de ter chegado a Queenstown, não me custou nada parar um pouco.

Por melhor que me estivesse a saber a inércia, sabia que não podia ficar assim o dia todo, sob pena do descanso passar a monotonia, coisa que detesto. Precisava assim uma actividade que eliminasse qualquer hipótese deste ser um dia igual aos outros. Enquanto estava deitado na relva surgiu-me a solução, ao olhar para os montes sobranceiros a Queenstown, ligados à cidade pelo teleférico. Dirigi-me à estação ao nível do solo, apanhei uma cabine até ao cimo, descobri o quiosque adequado ao que pretendia, e cinco minutos depois estava a voar sobre a cidade e sobre o Lago Wakatipu, pés suspensos a várias centenas de metros de altitude, com o ruído vento como único companheiro, a minha vida dependente da experiência do piloto do parapente (lembrei-me deste detalhe nos breves momentos em que ele deixou que eu próprio pilotasse a asa).

A experiência é uma combinação única de paz e adrenalina: paz quando planamos no céu, a grande altitude, mesmo quando pouco abaixo estão as copas das árvores, e adrenalina no minuto final, quando a asa se precipita, rodopiando a alta velocidade, para o local de aterragem, até darmos o sinal que preferimos voltar ao ritmo tranquilo que tínhamos experimentado nas alturas.

Aquilo que senti quando aterrei em terra firme, e a adrenalina voltou a descer, foi a satisfação de ter obtido exactamente o que procurava quando decidi subir ao monte: longe de arriscar a caír monotonia, o resto do meu dia, foi passado a disfrutar, noutra esplanada a ler e beber cerveja, uma tranquilidade caída do céu.

Os últimos dias longe

Entrei agora na última semana da minha viagem. À hora do almoço de sexta abandonarei Auckland e, com a ajuda do meio dia que vou recuperar em fusos horários, às primeiras horas da manhã de Sábado estarei de volta a Lisboa.

Pelo facto de ter trazido o computador portátil com o objectivo, aliás cumprido, de criar e alimentar um diário online da experiência, acabei também por não perder inteiramente o contacto com o meu Mundo: esqueci-me que o Porto jogava contra o Benfica, mas não deixei de ter a informação do resultado nas 24 horas seguintes, graças ao apoio de quem ficou no escritório não me preocupei com trabalho nas últimas semanas, mas recebi todas as boas notícias em primeira mão (e hoje voluntariei-me para as primeiras reuniões após o regresso).

Tem sido uma proximidade estranhamente distante, no entanto, até porque mantive hábitos totalmente distintos dos que trazia de casa: houve dias em que deitei na cama quando os últimos raios de Sol ainda iluminavam o céu, e várias noites em que acordei, estranhamente, por mim mesmo, porque a manhã já tinha tido o seu início, e mesmo cansado algo me impelia a levantar-me.
Foi também possivelmente o mais longo período de tempo que passei totalmente afastado do meu ambiente quotidiano, dos sítios, hábitos e pessoas que normalmente rodeiam a minha vida.

Não sei se voltarei ter oportunidade de repetir a experiência; o que sei é que saio dela enriquecido, nem que seja pela forma como o tempo que não dediquei aos outros se pareceu multiplicar para a leitura, o pensamento e a escrita, e como dei por mim com mais tempo e abertura para observar o que me rodeava.
Tenho mais uns dias, que vou aproveitar ao máximo. E com isto não quero apenas dizer que vou aproveitar os últimos dias de férias. Mais do que isso, quero aproveitar ao máximo os últimos dias em que estou longe.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Não há bela sem senão

Quando planeei esta viagem, e após consulta às duas pessoas que conheço que passaram algum tempo na Nova Zelândia, uma das referências incontornáveis foi o Milford Track, um percurso (na América do Sul e Nepal fala-se de Trek ou Trekking, aqui é um Hike) realizado a pé num ambiente de forte beleza natural.

A minha experiência anterior era escassa embora, seguindo a minha habitual mania das grandezas, se resumisse a um dos principais percursos mundiais, e o mais conhecido do continente Americano, o Caminho Inca, a via pedestre que essa antiga civilização — chacinada pelos nossos vizinhos espanhóis com a Bíblia como justificação — tinha traçado para ligar o Vale Sagrado à mítica cidade perdida de Machu Picchu.

Em relação à minha experiência anterior registaram-se algumas diferenças de vulto, umas positivas, outras nem tanto. Na coluna das vantagens sem dúvida o meu peso ser agora menor em alguns quilos, estar em melhor forma que há dois anos (embora em pior forma que há um mês), e o facto do Milford Track não exceder, na sua altitude máxima, os mil e poucos metros, contra os dois a quatro mil do caminho Inca. Por outro lado, e ao contrário do que sucedeu no Perú, em todas as paragens tive à minha disposição um tecto, uma cama lavada, um duche quente, e uma casa de banho privativa, factores que separam a civilização da selva, especialmente o contrato de exclusividade no conjunto retrete-autoclismo.
Na coluna das perdas há duas a salientar: dado que a Nova Zelândia não é, ao contrário do Perú, um País com mão-de-obra barata e abundante, não havia carregadores, pelo que eu próprio tive que transportar a minha bagagem às costas. Quando fazemos mais de cinquenta quilómetros em três dias, acreditem que há uma enorme diferença entre carregar um livro e uma garrafa de água ou levar dez quilos numa mochila, pelo que no final do percurso os meus ombros pareciam ter jogado dois jogos de Rugby de seguida.

O outro problema foi a chuva: a região das Fiordlands, onde o Milford Track se desenrola, é das mais chuvosas do planeta, pelo que oitenta por cento do percurso foi realizado debaixo de chuva, que alternou entre o forte e o dilúvio. Garanto que nunca me tinha sentido tão molhado, durante tanto tempo, e de forma tão profunda, como nestes dias, em especial no último dia de caminhada, em que percorri vinte e um quilómetros, em alguns trechos com água acima dos tornozelos, debaixo de um dilúvio torrencial que só teve cinco minutos de intervalo, em que brilhou um Sol radioso na clareira por onde eu passava naquele momento, qual andorinha no pino do Inverno, desaparecendo em seguida para dar lugar a novo turbilhão de água.

Por mais estranho que possa parecer, não lamento, nem lamentei no momento, a chuva. Foi graças a ela que pude observar, por vezes com um único olhar do sopé ao cimo de uma montanha, todo o ciclo da água a decorrer debaixo dos meus olhos, das neves eternas dos cumes até às quedas de água que atingiam a superfície com uma força arrasadora. Cheguei a contrar mais de vinte cascatas numa única falésia, a mesma falésia que nas fotografias de postal, tiradas sem chuva, não apresentava um fio de água que fosse.

Nas duas curtas paragens que fiz nos vinte e um quilómetros do último dia, mudando a roupa do tronco para não ceder ao frio, comendo ou bebendo algo em pé, para não deixar os músculos relaxar ao sentar-me, lembrava-me sempre de uma verdade incontornável: que devia à mesma água que me ensopava até aos ossos, e que inutilizou temporariamente a minha máquina fotográfica nos dez quilómetros finais, algumas das visões mais arrebatadoras do percurso, senão da minha vida. Aqui, no Milford Track, somos inúmeras vezes recordados daquele velho provérbio português: não há bela sem senão.

Lá se foi a minha desculpa

Num momento de distracção aceitei há uns tempos o desafio de um amigo meu para escrever algo que fosse remotamente publicável, por outras palavras, ou melhor, nas palavras dele, um livro.

Ele é um entusiasta de livros que acredita (vá-se lá perceber porquê) que eu sou capaz de escrever um e, mais do que isso, que tenho o dever de o fazer. Eu sou alguém cuja principal fraqueza é o tamanho do ego, que me leva a distraír-me facilmente com elogios, pelo que ambas as coisas juntas resultaram numa associação que eu chamaria, no mínimo, criminosa.

Claro que só a distracção explica a veleidade da promessa — e eu gabo-me de cumprir sempre o que prometo — já que necessitei de uma viagem ao lado oposto do Mundo para ter um pretexto para voltar a escrever por outra razão que não fosse responsabilidade profissional, ou mais prosaicamente ganhar dinheiro ao final do mês.

Há anos a fio que não escrevia com esta constância e prazer, pelo que foi irrealista comprometer-me a passar do oito ao oitenta num único passo, da página colocada na máquina de escrever há mais de quinze anos para o manuscrito editável à razão de cinco mil palavras por mês.

Contava usar este blog como desculpa para me escapar por mais um tempo à aposta com o meu amigo, e às dez mil palavras que me tinha comprometido entregar em Janeiro. Já tinha, inclusivamente, passado este blog pelo crivo da contagem de palavras do MS Word, verificando que excediam as tais dez mil, o que à partida me garantiria alguma margem de tolerância.

O plano era enviar-lhe, à chegada a Lisboa, o endereço desta página, como prova da bondade das minhas intenções, e do facto de eu ter efectivamente ocupado o meu tempo livre a escrever.

Tudo teria corrido na perfeição, se ele não tivesse entretanto descoberto este blog (em nova distracção motivada pelo ego, coloquei o endereço no meu nickname do messenger).

Parece-me que agora fiquei sem desculpa. A única coisa que me consola é que quando começar, finalmente, a cumprir a minha palavra, se terão passado bem menos que quinze anos desde a última vez que escrevi sem intenção de ganhar dinheiro com o resultado.

I survived the Milford Track

Estou agora sentado na minha suite no hotel de Queenstown a fazer algo que normalmente não faço antes do Sol se pôr, mas que se tornou aceitável nesta alteração de hábitos e horários que tem sido a minha vida nos antípodas: a abrir uma garrafa de Speights, uma das boas cervejas locais, que vou consumir acompanhada por uns saborosos amendoins com sal.

Comecei por estar num quarto normal, com vista mais favorecida, é certo, mas cuja ligação de internet wireless comportaria um custo excessivo para os meus hábitos de utilização da rede, pelo que a solução encontrada pela Veronica, a simpática argentina que dirige a recepção (um bom sorriso e um muchas gracias operam milagres nesta parte do mundo, posso dizer-vos), foi fazer-me um upgrade, cujo sobrecusto ela, de uma forma muito latina, me disse não ser preocupação que devesse ocupar o meu tempo.

O computador entreteve-se durante largos minutos a receber os 576 ficheiros, a grande maioria imagens, que a minha máquina fotográfica coleccionou desde que abandonei, na última quinta-feira de manhã, este mesmo hotel, até ao regresso, com a restante comitiva, no autocarro de turismo que nos trouxe desde a pequena e remota (leia-se sem rede de telemóvel) cidade de Milford.

Durante esses dias fiz, pelo meu pé, trinta e três milhas e meia, cerca de cinquenta e cinco quilómetros. Se subtraírmos uma milha, quinze a vinte minutos de passeio tranquilo, no primeiro dia, são cinquenta e três quilómetros efectivamente feitos em três dias, Sexta, Sábado e Domingo, sendo que ontem percorri, debaixo de uma chuva torrencial, vinte e um quilómetros em terreno acidentado e passando por dezenas de zonas de avalanche, centenas de cascatas e uma boa quantidade de cursos de água, cuja travessia nalguns pontos me molhou até bem acima dos tornozelos.

Foram seis horas de marcha contínua e acelerada, molhado até aos ossos, de que o meu corpo ainda está, confesso, a recuperar, apresentando sequelas várias que o tempo gradualmente se encarregará de resolver, embora me pareça que a recuperação total se vá arrastar quase até ao regresso a Lisboa. A primeira vítima foi o salto de queda livre que tinha agendado para amanhã, cancelado não só porque o meu estado físico não o aconselha, mas sobretudo porque o tempo carregado, com nuvens baixas, retirariam a visibilidade sobre o lago Wakatipu, que era o principal aliciante do programa. Não é assim, ainda, uma vítima definitiva, embora neste momento possa ser algo mais próximo de um desaparecido em combate.

Independentemente destes detalhes, a verdade é que foi uma experiência única, que relatarei em detalhe mais à frente. Passei por paisagens de uma beleza deslumbrante, e mais do que isso pude recordar a nossa verdadeira escala e importância face ao poder da natureza, algo que a civilização e o enquadramento urbano em que vivemos muitas vezes nos levam a esquecer. Foi também uma forma de conviver com os meus limites físicos, como já não acontecia desde que fiz o caminho Inca, nos Andes peruanos, com a vantagem da altitude mais aceitável deste percurso se ter somado a uma forma física que, apesar da escassez de exercício antes da viagem, era claramente superior à que eu tinha quando parti para a minha anterior odisseia de Trekking, há mais de dois anos.

Terei os próximos dias aqui em Queenstown para recuperar, se o tempo melhorar aproveitarei para alugar um carro e passear nas proximidades, seguindo algumas dicas que recolhi dos meus companheiros de Trekking. Tenho ainda pela frente a tarefa de desarrumar e arrumar, pela terceira e última vez nesta viagem, a minha mala. De qualquer forma, e antes de tudo isso, acho que agora vou descer até Queenstown, e acompanhar o jantar com mais uma boa cerveja neozelandesa.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Uma pausa para a caminhada

Hoje faço uma pausa no ritmo infernal a que tenho realizado 'posts' neste blog (o Pacheco Pereira que me desculpe, mas não vou contribuír para reforçar a lusofonia da rede escrevendo 'blogue': é como escrever xampu em vez de Shampoo, ou sítio em vez de site).

É uma pausa por uma boa causa: amanhã pelas nove da manhã (quando forem dez da noite de quarta-feira em Lisboa), estarei a colocar a minha bagagem na carrinha que me vai levar até perto de Te Anau, junto à Costa Oeste da Nova Zelândia, de onde parto para o Milford Track, descrito por qualquer guia da especialidade como um dos 'dez mais bonitos' passeios cénicos (o que quer que isso seja) do Mundo, que tem o seu culminar no Milford Sound, um desfiladeiro de beleza épica, definido por Ruyard Kipling como a oitava maravilha do mundo conhecido.

Não sei se é um dos dez mais, dos vinte ou dos cem, nem me lembro das restantes sete maravilhas a que o escritor inglês se referia, e sinceramente depois de ter sobrevivido a quatro dias sem banho e WC nos Andes, entre os dois e os quatro mil metros de altitude, para ver Macchu Pichu ao amanhecer, também já não sinto que precise de ganhar qualquer tipo de galões a percorrer quilómetros de botas calçadas.

O que sei, e o que em deixa descansado, é que qualquer neozelandês a quem eu digo que vou fazer o Milford Track me dá imediata aprovação e encorajamento. Também sei que não há nada como uns dias efectivamente afastado dos confortos da civilização — embora a experiência do Perú me tenha feito ver que vai compensar o investimento extra que fiz desta vez, num quarto, retrete e duche privativos — para, como dizem os ingleses, pôr as coisas in perspective, aproximando-nos da natureza e lembrando-nos que é dela que fazemos parte, e não do aglomerado de vidro, cimento e stress em que vivemos a maioria do tempo.

Estive hoje a ver o DVD com preview (sorry, Pacheco) do que vai ser a viagem e tenho a sensação que não sairei, mesmo que o tempo não ajude (e a chuva é bastante provável nesta altura e no caminho que vou fazer), defraudado com esta aposta.
Vou tirar com toda a certeza muitas fotografias, e no segundo e terceiro dias, os mais exigentes, adormecerei com o cansaço antes do gerador ser desligado, às dez da noite. O portátil ficará no depósito de bagagens do hotel, substituído pelo livro de notas Moleskine e pela caneta. Levarei o mínimo necessário, porque em mais de cinquenta quilómetros de caminhada cada cem gramas supérfluos na mochila sentem-se nas costas. O telemóvel só irá comigo porque preciso de despertador e não tenho outro, mas mesmo que houvesse rede passaria sempre o dia desligado.

Até segunda-feira (Domingo à noite em Lisboa) vou estar na parte da viagem que tinha planeado para não haver escapatória. Quer queira, quer não, durante a maioria dos próximos cinco dias vou estar longe do mundo. É a única maneira de verdadeiramente escapar: estar num sitio onde o táxi mais próximo está a dois dias de caminho. Num dia normal ficaria preocupado por não haver táxis. Desta vez, confesso, estou tudo menos preocupado com isso.

A 'postar' furiosamente

Parei um segundo para pensar ao reparar que tenho mais de vinte entradas neste blog num número inferior de dias.

A explicação estará algures entre o relato da viagem que queria preservar para eu próprio rever mais tarde (só decidi divulgá-lo aos meus amigos praticamente à saída de Hong Kong), a partilha dessa mesma viagem com as (duas ou três) pessoas que nela possam ter interesse e, last but not least, a recuperação do prazer de escrever alguma coisa que não seja trabalho, depois de anos a fio sem o fazer, pelo menos com esta regularidade e constância.

Não me interessa saber qual das razões me leva a ter investido tanto tempo a escrever esta página. Sei é que, com maior ou menor fúria, agora não tenho outra opção que não seja prolongar este exercício até ao vigésimo terceiro dia de Dezembro, quando aterrar em Lisboa.

Os meus australianos, cães e Coca-Cola

Depois de uma retemperadora manhã de sono até mais tarde que o habitual, que transformou a moleza de ontem, um pouco como a letargia que antecede uma gripe, num dia de energia e boa disposição, dediquei o dia de hoje a vaguear por Queenstown, tentando cumprir o plano que já tinha estabelecido, e tentar ser romano quando em Roma.

Comecei por um almoço substancial que tornou imperioso o passeio digestivo — não tomei o habitual pequeno almoço reforçado, que conjugado com a quase total ausência de exercício desde que cheguei a esta ilha me deve ter feito ganhar uns dois ou três quilos, que de qualquer forma não devem sobreviver aos 52 km do Milford Track — passeei sem rumo definido na cidade, o que serviu para reforçar a primeira impressão que tinha tido ontem, de que este é um sítio jovem e descontraído, onde a maioria das pessoas não usa calças ou sapatos, mas onde se pode encontrar uma loja Louis Vuitton ou um estabelecimento vinhos gourmet perdidos entre os múltiplas montras que anunciam t-shirts, óculos escuros, bebidas e comidas, saltos de bungee jumping, voltas de jet boat e todos os outros bens e serviços apreciados pelos jovens radicais.

Só tinha três objectivos definidos, que dado o tamanho da cidade se resolveram a uma distância de dezenas de metros entre si: verificar previamente onde era o rent-a-car onde vou ter que devolver o carro antes de ir fazer o Milford Track e se estava aberto cedo (abre às oito, como todo o comércio local), marcar o meu salto de queda livre de 15.000 pés, mais 3.000 do que se consegue em qualquer outra parte do mundo civilizado, e receber o briefing do Milford Track, que inicio amanhã, comprando os últimos utensílios e roupa necessários à caminhada.

Mas se ontem percebi até que ponto esta cidade é jovem e descontraída, foram precisas as seis ou sete horas que hoje passei aqui em voltas, com uma passagem pelo hotel para descarregar a mochila e as compras que tinha feito para o Trekking, para perceber até que ponto é uma verdadeira mescla de nacionalidades, apesar de eu, como português, continuar a dispôr do estatuto de raridade exótica que parece acompanhar-me desde que o avião da New Zealand Air me depositou em Nelson.

Para além dos japoneses, chineses e coreanos, cruzei-me com uma quantidade considerável de turistas indianos (!), uma espécie que eu desconhecia existir, e que encontro em Queenstown pela primeira vez nas minhas viagens pelos cinco continentes. Possivelmente todos os (vinte) indianos que fazem turismo fora do seu País, marajás à parte (e esses quando vão passar o fim-de-semana a Londres não vão para um hotel, compram um palacete) vêm a Queenstown, um pouco como os ingleses a quem o agente de viagens diz que em Portugal só existe o Algarve.

Confesso que ver um indiano dentro de um táxi no banco de trás seria uma experiência cultural claramente superior aos sexagenários japoneses de botas de trekking de ontem mas, pelo menos hoje, os deuses não me bafejaram com tal sorte.

Depois de resolvido o briefing do Milford Track, a marcação do salto de queda livre do avião e o rent-a-car estávamos ainda a meio da tarde, e já tinha ocupado tempo suficiente sem fazer nada, leia-se beber café e ler numa esplanada junto ao lago, para não me sentir forçado a arranjar algo de diferente com que me ocupar.

Como em Roma devemos procurar falar latim, desloquei-me até à beira-lago, onde a oferta é múltipla (pescar, andar de jet boat, velejar no iate neozelandês que ganhou a America's Cup 3 vezes, é só escolher) e optei pelo para-sailing, um pára-quedas ligado a um cabo, puxado por sua vez por um barco, que nos puxa e eleva a uma altitude variável, que chega aos 200 m, sobre as águas do Wakatipu.

A experiência em si recomenda-se, e se evitarmos olhar para os nossos pés (lembramo-nos que se caírmos daquela altura, mesmo sobre a água, morremos), reparar no pequeno que se tornou lá em baixo o barco que nos puxa (idem) ou prestar atenção ao barulho dos cabos em tensão que nos suportam(ibidem), é uma sensação de liberdade tranquila, enquanto planamos com uma visão panorâmica sobre a deslumbrante paisagem que nos rodeia.

Depois de assinar o meu nome e país de origem no livro de registo, e de ter reparado que sucedia na folha a dois americanos e a dois indianos, do tal grupo de trinta, e de ter recebido o habitual elogio ao exotismo da minha nacionalidade pelo piloto do barco (Portugal? That's really strange, ain't it mate? We don't see that much, really...), lancei-me à viagem com mais dois casais, um de chineses e outro de gente com ar ocidental.

Vim a descobrir que eram espanhóis, ele achando que sabia falar inglês (até comigo tentou), ela tão nervosa de medo que nem dizia nada, ele a pedir-me para tirar fotos quando fosse a vez deles subirem, explicando-me que tinha muita memória e bateria (too photos, many battery) e podia disparar à vontade, perguntando-me, espantado com o meu ar tranquilo quando me abriram o arnês para me libertar do pára-quedas you first time this?
Digamos que o neozelandês deve ter percebido que aquele casalinho eram para mim o equivalente ao que para ele seriam dois australianos. À saída do barco ignorou-os completamente, quanto mais não seja para evitar o esforço intelectual de transformar o que eles diziam em inglês, e de mim despediu-se com um piscar de olho e um bye brother. Eu era o gajo exótico que tinha vindo do outro lado do mundo. Eles eram dois turistas que pareciam preparar-se para aquela diversão inocente como se fossem subir ao Everest e falavam muito, num inglês pior do que o dos simpáticos chineses que nos fizeram companhia.

Ao conseguir comprovar que um espanhol é sempre um espanhol, mesmo do lado oposto do Mundo, e que existem turistas indianos, embora provavelmente só nesta cidade do mundo, achei que já tinha tido a minha dose. Estava enganado.
O epílogo deu-se quando decidi comer um sushi ao jantar, cativado por sushi-men japoneses atrás do balcão, e o empregado (o único caucasiano), depois de perguntar de onde era, respondeu, em português, "pô... não si vê muito djisso aí não". Era de Minas Gerais e depois de me dizer que era "incrível memo" estar a ter um cliente português, o primeiro que ele se lembrava de atender, explicou-me com o humor típico do povo que herdou do português o gosto pela autofagia, que o que não faltava neste cidade eram cidadãos do país-irmão, porque brasileiro é como cão e coca-cola, você encontra em qualquer lugar do mundo.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Informações (quase) completamente inúteis

O facto de ter vindo para esta viagem sozinho, independentemente de algumas pequenas desvantagens (não poder cutucar o cotovelo de alguém quando vejo uma miúda gira, ou discutir os resultados do futebol) tem-me permitido apreciar as coisas com um pouco mais de profundidade, dado que utilizo para investigação e observação do que me rodeia o tempo que gastaria com conversas, que na sua maioria poderiam ocorrer em Lisboa, com um eventual companheiro de viagem.

Nesta semana que levo de Nova Zelândia já consegui recolher algumas informações, umas importantes para perceber o que é este País, outras (a maioria) inúteis, que aproveito para transmitir:

* Há, pelo menos em Auckland, tantas mulheres como homens a guiar táxis. Este foi o primeiro país do mundo a dar (em 1893) o direito de voto às mulheres. Um homem tem que ser taxista para ir sempre pelo caminho mais longo, numa mulher é uma qualidade inata, pelo que nada mais natural que pô-las ao volante de um táxi.

* Os pacotes de açucar têm menos açucar em Portugal. Lá têm 7/8 gramas, aqui não devem ter mais que 5, se tanto. Ou seja, ou usamos dois pacotes e pomos açucar a mais ou emagrecemos.

* Há café expresso (espresso, para ser rigoroso) em quase todo o lado, tal como misteriosamente os gelados na Austrália são apresentados como genuine gelatto. Deve haver uma relação.

* Na imprensa é dado mais destaque à escolha do próximo treinador dos All Blacks do que do que ao primeiro ministro. Os dois pretendentes (o actual treinador e um outro) tiveram 30 minutos para argumentar junto da Federação Neozelandesa de Rugby porque deviam ser escolhidos. Ao contrário do habitual, apesar de ter perdido o campeonato do mundo o treinador actual conseguiu aguentar-se. O candidato preterido foi filmado hoje, com um ar pesaroso de quem perdeu uma final, a meter-se no avião para ir à Austrália negociar o prémio de consolação (treinar a selecção australiana de rugby).

* Não há predadores terrrestres autóctones na Nova Zelândia, pelo que os pássaros eram maiores que em qualquer outra parte do Mundo. Quase todos foram extintos: os Maori caçaram até à extinção o Moa, o maior pássaro terrestre do planeta, que chegava a ter 3 metros de altura. Menos sorte ainda teve o Huia, um passaroco que tinha uma belíssima pena de cauda. No final do Século XIX no regresso de uma visita à Nova Zelândia o então Duque de York levou uma dessas penas no chapéu, lançou a moda em Londres, os ingleses enfeitaram furiosamente os seus chapéus e em poucos anos extinguiram a espécie.

* 80 por cento da flora é autóctone. Deve ser por isso que eu nunca vi pinheiros tão altos na minha vida (chegam a ter uns 30 metros ou mais). É porque se calhar não são pinheiros...

* Em Os Maori assinaram um tratado que cedeu parte da soberania das ilhas aos colonizadores, em troca de consagração de alguns dos seus direitos. Que parte e que direitos é que não se sabe muito bem, porque ainda hoje não há acordo quanto à tradução...

* Tirando os Maoris, a Nova Zelândia é uma sociedade bastante igualitária. Resultado: o parque automóvel parece o de Portugal nos anos 80, se trocarmos os Fiats e Renaults por carros japoneses e coreanos. Em cinco dias só vi um Audi, 2 Range Rovers e um jipe Mercedes. De resto tudo carros japoneses com 10 anos ou mais. Quando comentei casualmente, com o porteiro de um hotel de luxo onde estava, que o carro que estou a usar é a coisa mais feia que já guiei, a resposta veio certeira: what's important is that it takes you from point A to point B, ain't it sir?

* Todos os turistas deste País são, por esta ordem, japoneses, chineses e coreanos, para além de mim e de quinze australianos.

* Os neozelandeses apoiam de alma e coração não uma, mas duas equipas de Rugby: The All Blacks and anyone playing Australia

* O Kiwi, nome porque são conhecidos os neozelandeses, não é (só) um fruto. É um pássaro.

* Há cidades que têm gondolas. Não, não são a remos. São teleféricos.

A Rainha descalça

Cheguei há pouco a Queenstown, ainda a tempo de almoçar um prato de penne com um saboroso molho de frango, natas e cogumelos (é engraçado como, vá-se onde se for no mundo, encontra-se sempre um restaurante que tem um prato do dia que é pasta).

Segundo a explicação mais popular, e também mais próxima do mito do que do facto histórico, a cidade deve o seu nome a um garimpeiro que, durante a febre do ouro de que este local foi palco, na década de 60 do Século XIX, exclamou que o local estava à altura da Rainha Vitória. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, e Queenstown é uma cidade onde ficamos com a impressão que por pouco não anda toda a gente descalça.

Tirando provavelmente os residentes — dez mil habitantes, segundo as estatísticas, que a julgar pelo movimento e pela quantidade de carros estacionados serão uma pequena parte do total de pessoas que por aqui andam — fico com a sensação de ter aterrado numa praia da Ericeira em dia de campeonato do Mundo de Surf, ou numa tenda de chás medicinais do Boom Festival.

Não é uma queixa, até porque em meia dúzia de horas vi mais miúdas bonitas com ar arejado (de quem apesar de tudo tomou banho esta semana) do que somando os dias anteriores na Ilha Sul, mas a verdade é que a cidade transpira frescura e descontracção, ao ponto do grupo que se sentou ao meu lado para beber uma cerveja enquanto eu almoçava ter amarrado a coleira do cão (a la cavalo do velho Oeste) a uma espécie de corrimão na esplanada do restaurante, enquanto os meus vizinhos do lado oposto se entretinham a alimentar os pássaros que andavam tranquilamente... em cima da mesa.

Mesmo os japoneses, esses meus velhos conhecidos (acredite-se ou não, ao fazer o check in encontrei logo um grupo de nipónicos de meia idade, instalado nos sofás do hall da recepção, a receber instruções do seu guia) andam de calções e bastão de caminhada na mão, porque se não se integram no movimento radical que parece assaltar a cidade — deve ser o sítio do Mundo com maior oferta de shots de adrenalina por metro quadrado, do bungee jumping à queda livre, passando pelo parapente, rafting ou jet boating, para além de inúmeras estâncias de ski — até eles se sentiriam deslocados se para aqui viessem passear as máquinas fotográficas.

Recuperado o trauma de ver sexagenários japoneses de calções, mochila e botas de trekking (uma estreia absoluta, mesmo para um viajante calejado como eu), depois do almoço dei um primeiro passeio pela cidade, e apanhei o teleférico que dá uma vista panorâmica sobre o Lago Wakatipu, que com 290 Km2 tem quase quatro vezes a área de Lisboa, e sobre os Remarkables, um conjunto de montanhas próximo, cujo pico mais alto, o Double Cone, atinge os 2340 m.

Hoje foi um dia que decidi dedicar a uma tarefa fundamental e substantiva, que como todas as tarefas substantivas demorará tempo, pelo que a adiei até ao limite do possível: arrumar a minha mala, separar a roupa para os meus dias de Trekking e organizar o que preciso até à ida para Auckland.

Tenho passado o dia estranhamente mole e adormecido (parei, inclusivamente, para dormir meia horita à vinda de Mount Cook para aqui), e o tempo persistentemente chuvoso deve ter algo a ver com esta vontade insistente de me deitar a ver televisão e dormir uma sesta, a que até agora consegui resistir.

No entanto, e dado que amanhã se prevê o regresso do Sol, vou aproveitar para arrumar a mala, usar a ligação à internet do quarto, experimentar a paella de marisco (estou curioso, até porque ainda não comi mal em território neozelandês) que o restaurante do Hotel me propõe, atacar mais um pouco dos dois óptimos livros que estou a ler e, em suma, recuperar forças, um imperativo se pensarmos que depois de amanhã a esta hora já estou no primeiro lodge do Milford Track.

O filme a rever

O cérebro é uma máquina de memória associativa, e quando se fala da Nova Zelândia provavelmente nove em cada dez de nós (e lá vai mais uma estatística impossível de comprovar) recorda-se do Senhor dos Anéis, um filme que, não por acaso, foi realizado por um neozelandês.

Com a minha mania que não sou carneiro — dos que seguem o rebanho, não o signo do zodíaco, que ironicamente até é o meu — evitei até ao limite do possível a tentação de misturar o Senhor dos Anéis com a minha viagem (apesar de ter lido a obra de JRR Tolkien ainda mais novo que o Peter Jackson), mas acabei por ceder quando passava casualmente por uma loja de souvenirs no topo do teleférico de Christchurch, e vi um livro que relaciona os cenários do filme com as várias regiões das ilhas Norte e Sul onde as filmagens decorreram, para além de algumas informações laterais (a forma como determinadas cenas combinam elementos de locais diferentes, por exemplo) importantes para quem quer rever o filme e relacioná-lo com os cenários neozelandeses.

Desencorajado pela chuva intensa a aventurar-me fora do hotel, aproveitei para matar o tempo que tenho em excesso a perceber se alguma coisa se passou na proximidades, e pelos vistos saíu-me o jackpot. Parece que foi nos montes ao fundo da minha janela, um pouco ao lado do Mount Cook, que foi digitalmente implantada a cidade de 'Minas Tirith', onde se desenrola a maior batalha do Senhor dos Anéis, no terceiro filme da saga, que antecede o assalto final a Mordor. Apoiado nas fotografias do livro apercebi-me que a caminhada de Gandalf a caminho da cidade, para a avisar da chegada iminente das hordas de Sauron, foi filmada poucos metros abaixo da minha janela.

A batalha propriamente dita, a cena épica em que milhares de cavaleiros vão em socorro da cidade quando a sua queda já parecia iminente, foi filmada noutro local, o planalto de Twizel, a cerca de sessenta quilómetros daqui. Amanhã, a caminho de Queenstown, parece que vou ter que completar a outra metade da cena. E, a partir de agora, já sei como vou ocupar parte do meu tempo de minha recuperação caseira do jet lag.

Nota: este post foi escrito no dia anterior a ser colocado online, dado que o famous Hermitage não tem internet em condições

Mr. Lato

Chegado ao Hermitage Aoraki Mount Cook — "the famous Hermitage", nas palavras da Andrea, uma das duas miúdas americanas do Colorado que, na sua tipicamente anglo-saxónica viagem semi-descalça antes de acabarem os estudos, apanharam a minha boleia até aqui— deparei-me com uma verdade universal: por mais voltas eu dê, nesta viagem corro sempre o risco de esbarrar num grupo de japoneses, risco esse que aumenta quanto mais "famous" fôr o local.

Neste caso a coisa vai ao ponto do hotel ter uma recepcionista japonesa e outra chinesa, sendo que eu na minha inocência inicial acabei por fazer o check in com esta última, que tomei por neozelandesa de olhos em bico (que também as há), o que resultou no primeiro momento de boa disposição da estadia, quando lhe pedi para adiar em uma hora a marcação de mesa que me tinham pré-reservado para as 19:30h, e ela cheia de boa vontade tentou soletrar o nome do 'mr. Lato' para o seu colega neozelandês do lado de lá do telefone só perceber à terceira.

À superfície o Hermitage é um bom hotel de montanha, mas não muito mais do que isso, faltando-lhe inclusivamente algumas das possibilidades que seriam de esperar de um dos cinco estrelas mais conhecidos e tradicionais do País: para além do pecado mortal de não dispôr de menu de 'room service', apesar do guia de serviços do hotel referir que existe "se por alguma razão não lhe for possível utilizar o restaurante", não tenho internet no quarto, ao contrário do que seria de esperar, e os computadores que dão acesso à rede lobby da minha ala funcionam movidos a moedas, e a uma velocidade que me faz supor serem de 1999 (e os chineses não percebem de certeza o que é "fast internet").

Para compensar, e para justificar o facto de ter sido o hotel mais caro de toda a minha estadia, para além do facto de estarmos a 68 Km da povoação mais próxima, está a vista deslumbrante que tenho da janela panorâmica do quarto, embora o dia chuvoso e as nuvens cerradas de hoje só ao fim do dia me tenham permitido descortinar o cume da montanha mais alta da Oceania. Espero sinceramente que as previsões de noite clara que me fizeram ontem se confirmem, e que amanhã de manhã, antes de saír, possa tirar a partir do quarto uma fotografia que rivalize com a do site do hotel.

Independentemente de não estar à altura dos meus padrões de conforto e serviço, a verdade é que não é difícil perceber porque qualquer neozelandês conhece o Hermitage: as suas origens remontam a 1884, sendo que a sua versão actual foi construída depois de um devastador incêndio, que destruíu totalmente as instalações então existentes, em 1958. A ala onde estou — Aoraki, palavra Maori que significa "nuvem no céu", e antecede "Mount Cook" na designação oficial da montanha — foi inaugurada em 2001. Foi aqui que Sir Edmund Hillary treinou a subida ao Evereste, e o nome do neozelandês que foi o primeiro homem a chegar ao cimo da montanha mais alta do mundo (este facto em si foi um mistério até muitos anos depois, quando o sherpa Tensing confirmou que o primeiro pé a pisar o topo foi o do seu companheiro de escalada) está aqui por todo o lado. Aliás, se pensar bem nisso Hillary está literalmente por todo o lado, porque é sua a cara que vem nas notas de cinco dólares neozelandeses.

De qualquer forma, se por um lado valeu a pena ter incluído o Hermitage no meu percurso, mesmo que seja só para ver os três mil e muitos metros das três montanhas à frente da minha janela a desaparecerem nuvens adentro, por outro lado foi uma boa decisão limitar a minha estadia a uma noite: o mau tempo desencoraja grandes passeios, e depois da paisagem deslumbrante do lago Tekapo onde hoje acordei, e do azul sobrenatural do Lago Pukaki, ambos emoldurados por picos brancos no horizonte, se amanhã não vir o cume não será grave. É que, apesar da vista verdadeiramente deslumbrante que tenho da janela, não me vai custar muito abandonar este ninho de nipónicos de terceira idade para atacar as quatro horas de estrada que me separam de Queenstown, onde a média etária do hotel descerá consideravelmente, e onde na quinta-feira começa para um dos pontos altos da minha jornada, o Milford Track.

Nota: este post foi escrito no dia anterior a ser colocado online, dado que o famous Hermitage não tem internet em condições

domingo, 9 de dezembro de 2007

And now a word in english

Today I met a couple of retired english people who had been travelling for the past two months. They had been in Hong Kong, as I have, came to New Zealand, where we met, and will still go to some obscure island in the Pacific before they return to London.

I hereby declare that I made a promise: when I am old and married I will travel around the world with my wife to the countries I haven't been to while I was young and single. To all three of them.

Cama e pequeno almoço

Cheguei há pouco a Lake Tekapo, que marca o primeiro dia da minha jornada para o sopé dos Southern Alps, o acidente geográfico mais significativo, e provavelmente a paisagem mais arrebatadora desta zona do Globo, repleta de locais que qualquer um de nós pode apreciar, com uma deslocação ao clube de video mais próximo, travestidos de cenários de super-produção de Hollywood em versão com sotaque neozelandês.

Peter Jackson disse que o momento seminal do filme de que todos nos lembramos hoje quando pensamos no seu País lhe surgiu aos dezoito anos, enquanto lia o épico de Tolkien no comboio que o levava da Wellington natal para Auckland, e ao olhar pela janela começaram a desfilar-lhe na memória as paisagens das Ilhas Norte e Sul, das quais o livro parecia falar "e a partir desse momento deixou de ser ficção para mim, e passou a ser uma história com cor e cheiro".

Ao escrever este post, deitado na cama no meu quarto com vista sobre o lago Tekapo, uma moldura de verde a fazer lembrar um cenário entre a série-americana-passada-cartão-postal -nas-montanhas e os Alpes suíços, com picos gelados a preencherem-me horizonte ao fundo, começo a entendê-lo.

Amanhã vou estar junto ao Mount Cook, o ponto mais alto da Australásia, com os seus três mil e setecentos metros, num hotel de renome e num quarto criteriosamente escolhido para ter uma vista arrebatadora para a montanha onde o neozelandês Edmund Hillary deu os primeiros passos do percurso de sucesso que só acabaria na escalada do pico mais alto do mundo, o tal que eu não queria morrer sem ver (e vi, da janela de um avião).

Hoje, no entanto, tinha escolhido um tipo diferente de alojamento, um conceito algo diferenciado daquilo que nós portugueses estamos habituados: um bed and breakfast, uma espécie de turismo de habitação em que os donos da casa recebem um número reduzido de hóspedes, a quem servem o pequeno almoço e recebem com genuína hospitalidade e familiaridade, um contraponto à simpatia estudada do The George, o small luxury hotel onde dormi ontem, em Christchurch, e ao anonimato luxuoso dos cinco estrelas de Hong Kong, Sydney e Auckland. Foi, aliás, para mim uma surpresa quando o meu portátil detectou que havia rede Wireless na casa. Mas sem surpresa, e pela primeira vez desde que uso internet, é oferecida pela casa.

A tarde foi passada na bebida das cinco (cinco e meia no meu caso, depois de uma volta sozinho pela vila), com o casal neozelandês de meia-idade que nos serve de anfitrião, no lugar dos donos, ausentes num casamento na Austrália, e os meus co-hóspedes, dois casais ingleses em gozo de reforma dourada, um dos quais partilha o meu gosto pela montanha, e os galões de quem sobreviveu ao Caminho Inca, do vale sagrado a Machu Picchu.

Desde que saí de Hong Kong tenho estado basicamente sozinho e, tirando conversas ocasionais aqui e ali — como as duas jovens neozelandesas que ontem no miradouro de Chrischurch decidiram, enquanto bebiam a que não seria com toda a certeza a primeira cerveja, que a melho rcoisa a fazer era saberem quem eu era — a verdade é que há uma semana que não trocava ideias de forma substantiva com ninguém.

Sei que sou uma pessoa atípica desse ponto de vista, porque socializo com tanta facilidade como dispenso totalmente o contacto mais aprofundado com os outros, mas a verdade é que só agora — depois desta hora e meia de conversa com seis pessoas com quem, apesar de muito diferentes de mim em todos aspectos, foi tudo menos difícil arranjar tema — me apercebi de que não conversava com ninguém há sete dias.

Se voltar a viajar sozinho continuarei seguramente a equilibrar o leque de alojamentos que peço, e a fatia de leão caberá, como sempre, aos sítios onde o meu dinheiro garante um sorriso, o tratamento por sir e o room service 24 horas por dia. Mas também não dispensarei, admito-o, alguns sítios onde só tenho garantida cama e pequeno almoço.

sábado, 8 de dezembro de 2007

No c* do mundo

Antes de me lançar a esta viagem naturalmente que falei com todas as (duas) pessoas que conhecia que tinham vindo à nova Zelândia, e os meus amigos não deixaram de relatar em segunda mão as impressões que as pessoas que conheciam tinham, por sua vez, recolhido por estas paragens: um deles tinha-me dito que eu iria ter, a julgar pela experiência que lhe tinham relatado, a clara sensação que estás longe de tudo, no cu do mundo.

Se consciente ou subconscientemente me sentia longe, quanto mais não seja porque o endereço deste blog, que tenho actualizado sempre que possível, que me recorda o quão longe isto é, confesso que só hoje me apercebi o perto que estou do orifício traseiro do planeta.

No teleférico com vista panorâmica sobre Christchurch, a dez quilómetros do centro, onde cheguei com a (preciosa) ajuda do GPS para matar as duas ou três horas livres que tinha para conhecer a cidade, estava uma tabuleta, daquelas que indicam as distâncias do ponto em que estamos para várias cidades do Mundo, semelhante às que já tinha visto em lugares tão díspares quanto Kathmandu e João Pessoa.

O que chamou a minha atenção não foram os 18.970 km que me separam de Londres, ou os 18.631 de distância para Frankfurt, a última escala do meu vôo para Lisboa. Afinal, a ida e volta daqui a Lisboa é equivalente a dar uma volta completa ao Globo.

O que me chamou a atenção foi um dos destinos, que não era uma cidade, mas provavelmente o sítio mais longínquo que pode ocorrer a qualquer português, mas que daqui dista apenas 3.700 Km, menos que Lisboa-Moscovo em linha recta: o Pólo Sul....

Sem passar das marcas

Depois de dar uma volta para me assegurara que tinha efectivamente acertado à primeira na escolha do restaurante com a melhor vista de toda a vila, optei por repetir o meu último almoço de Kaikoura no The Pier, após o que me pus a caminho de Christchurch.

A primeira parte da estrada desenrola-se junto ao mar, e o dia claro e sem nuvens de hoje tinha dado ao Pacífico uma coloração azul clara, que faria lembrar as Caraíbas não fosse a temperatura que me obrigava a usar duas camadas de roupa para poder manter a janela aberta.

Passando depois para o interior entrei no planalto que antecede a descida para a planície de Canterbury, onde estava o meu destino de hoje. O calor da hora do almoço e a digestão fizeram-me aceitar o conselho da prevenção rodoviária neozelandesa, que aqui está por todo lado, em tabuletas que nalguns casos até carneirinhos têm: Feeling Sleepy? Give it a break, e acabei por estacionar junto a um pequeno lago e dormir uma retemperadora sesta (uma power nap, como dizem os americanos) de meia hora, que me permitiu fazer o resto da viagem acordado.

A paisagem até à planície é um cruzamento entre o Alentejo e o campo inglês, com a estrada rodeada de aglomerados de montes como vemos nalgumas zonas do Sul de Portugal e da meseta espanhola, mas em vez do terra e castanho é antes o verde, mais escuro ou mais vivo, que pinta totalmente o quadro, de uma forma que só tinha visto no húmido, mas plano, campo das ilhas britânicas.

À medida que Christchurch se aproximava, a temperatura se tornava mais amena e estival e o trânsito se tornava mais intenso, reparei que mesmo com mais gente e calor o ritmo não muda, e todos seguem as indicações de velocidade, mesmo as que parecem difíceis de seguir sem adormecer.

Não é por acaso que as autoridades nos avisam para descansar se estivermos cansados: se a principal causa de acidentes em Portugal é o excesso de velocidade, aqui o que os causa é com toda a certeza o inverso, a facilidade com que se é vítima da monotonia, numa estrada que parece ocupada por autómatos em cruise control, de tal forma que fiz o percurso raramente passando os cem à hora (o limite na estrada) e só por uma vez fui ultrapassado.

Para quem vem de um país que faz do excesso na estrada uma forma de vida, é no mínimo estranha a facilidade com que me adaptei a este ritmo neozelandês. Um pouco mais depressa do que eles, mas reduzindo a velocidade sempre que vejo um sinal de trânsito que o aconselhe. No fundo estar do lado oposto do Mundo parece ter-me tornado num exemplar único: o português que não passa das marcas.